
Um dos autores mais reconhecidos da ficção científica portuguesa, João Barreiros conta na sua bibliografia com obras como Terrarium (com Luís Filipe Silva) e a colectânea O Caçador de Brinquedos e Outras Histórias.
Responsável por várias colecções de literatura especulativa nas últimas décadas, o autor já foi publicado em Espanha, França, EUA e Brasil. Em 2004, lançou A Verdadeira Invasão dos Marcianos, uma homenagem aos universos de H. G. Wells e Júlio Verne.
Em 2006, apresentou no Fórum Fantástico, sob chancela da Livros de Areia, a noveleta Disney no Céu entre os Dumbos. Em 2007, a editora Chimpanzé Intelectual irá dar o pontapé de saída à publicação e promoção da trilogia de ficção científica, A Bondade dos Estranhos.
Apesar de ser um livro perfeitamente independente, O Projecto Candy Man da autoria de João Barreiros consiste no 1 º volume da trilogia A Bondade dos Estranhos, cujos seguintes dois volumes estarão a cargo dos escritores Luís Filipe Silva e João Seixas, com histórias baseadas no mesmo universo.
Segue-se um excerto do livro que será apresentado pelo próprio autor e editor no Fórum Fantástico 2007.
Joana resolveu fazer um corajoso finca-pé perante esta aproximação feita de sons e odores. Quanto aos sons, as patas da criatura raspam o empedrado libertando dezenas de faíscas que vão morrer entre os fungos semi-líquidos do jardim. O ruído parece-se com um pedacinho de giz a riscar, contrafeito, a superfície de um quadro negro. Os espiráculos respiratórios cumprem as respectivas funções numa melopeia de estalidos sequenciais. Por outro lado, as pinças de ataque castanholam, entusiásticas, naquilo que só pode ser um ritmo frenético de boas-vindas.
— A menina decerto já notou que Sua Ex.ª está a dar mostras de inusitada alegria perante o advento da sua chegada, — explica Mr. Jeeves, sempre formal, mas a fazer de barreira para que Joana não possa recuar um único passo e deitar a correr dali para fora.
Vielmina aproxima-se, sempre a respeitar o percurso do empedrado, cumprindo uma ordem sequencial de espirais, ângulos rectos e aparentes retiradas estratégicas, como se devesse respeitar rigorosamente o caminho traçado no chão. Por fim, já muito próxima, com mais de dois metros de altura a partir do ângulo recto que o tronco faz com o resto do corpo, as mãos enluvadas deixam de rodopiar e estendem-se em frente, como se os membros tivessem capacidades telescópicas, para se imobilizarem a poucos milímetros das orelhas de Joana. Esta interroga-se se a Embaixadora a vai agarrar pela cabeça e osculá-la nos lábios, como é próprio das tias e das avozinhas senis. Por esta altura, se não tivesse tomado o transformador olfactivo, já estaria decerto a vomitar, como acontece com os restantes membros da espécie humana quando lidam de perto com os Spiertvick’kap. Mas a verdade é que a Embaixadora cheira a qualquer coisa parecida com pãezinhos quentes, a bolo de laranja acabado de cozer, a uma fatia de tarte de maçã a nadar num lago de natas geladas. A aura que a envolve é uma aura de total comestibilidade, como se a criatura não desejasse outra coisa senão ser devorada.
Finalmente, imóvel perante o corpinho de Joana que, honra lhe seja feita, não recuou um só passo, Vielmina Spratzt estende as mãos enluvadas (quatro dedos oponíveis na extremidade de cada um dos braços) e afaga os cabelos da rapariga, uma, duas, três vezes, como se quisesse chegar às orelhas que se escondem do outro lado. Joana sorri para mostrar os dentes, num gesto que pretende indicar que a sua espécie também estraçalha presas incautas desde há três milhões de anos. E enquanto sorri, sente o corpo a produzir feromonas de defesa. Feromonas exóticas, compatíveis com as de um Spiertvick’kap. Pelo ar em volta, dançam já as primeiras imagens alucinatórias, para as quais Joana ainda não conseguiu arranjar um significado contextual. Que importa? A Embaixadora iniciou o discurso de recepção e boas-vindas, com a voz a brotar-lhe do mini-tradutor semântico que traz ao pescoço, preso por uma fitinha azul, um cilindro com a mesma forma e tamanho de qualquer um dos componentes de Mr. Jeeves.
— Saudações calorosas, gostosa menina…Que doce, que snack, que petit-four…Que maravilha crocante tenho o gosto de receber à minha mesa…
Joana tossica, aclara a voz, e responde na mesma moeda:
— Vossa Ex.ª . também me aparece como absolutamente comestível, pode crer…
— Ah! — Exclama a Embaixadora, fazendo castanholar as pinças inferiores ao ritmo de uma melodia que aparentemente está na moda entre os humanos. — E com humor…Com um sentido apurado das não-verdades…O elemento educativo ideal para distrair e educar a ninhada durante a minha forçada ausência. Pronta para o processo pedo-correlacional, estimada humana Joana?
— Sra. Embaixadora…
— Vielmina, por favor, trata-me por Vielmina!
— Haja respeito, Excelência! — Estridula Mr. Jeeves. — Demasiada convivialidade corre o risco de provocar incidentes territoriais…
Vielmina ergue no ar uma das pinças, num gesto que tanto pode significar uma ameaça de estropiação eminente como uma mera expressão de enfado.
— Sou eu quem elabora os protocolos inter-espécies, Extensor. Sou eu quem decide se devemos ou não tratar-nos por tu. Menina Joana, as nossas relações com a espécie humana sofreram hoje um incremento deveras positivo. Um acto que eu estou certa que se repetirá amiúde.
— Tomar conta dos meninos? Mas Sra. Embai…digo, Vielmina. Eu nunca tomei conta de putos. Nem sequer de putos humanos. Não faço a menor ideia do que pretende de mim… Com certeza, existem membros da sua espécie mais capazes do que eu…
Chimpanzé Intelectual